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A lição do Gaúcho - Por David Nogueira

Sexta-feira, 07 Junho de 2013 - 16:23 | David Nogueira


Estava eu num descontraído papo matinal com um velho amigo das terras além “barriga verde”, quando uma despretensiosa historinha surgiu do nada.  Minha mente, fartamente regada por sangue lusitano, permaneceu incomodada pelos simbolismos do “causo”. O acontecimento haveria de ser considerado, afinal, meu amigo é um autêntico exemplar da fina estirpe gauchesca. No original, vinha com o objetivo de chegar a 1,90m de altura, bíceps avantajados e olhos azuis. Por economia anatômica, acabou adaptado a uma versão mais compacta e incolor. Como faz questão de destacar, os detalhes lá estão magistralmente distribuídos, porém em uma versão mais “socadinha” e arredondada. Tudo pela busca da perfeição na forma. Ainda assim, a inteligência sobrou, o bom humor permaneceu, e o minguado dinheirinho nosso de cada dia não ousou abandoná-lo, de forma definitiva, nos diferentes momentos da vida. Nesse entremeio, no qual teimava em afirmar (não sei bem a partir de qual permissa) que vinhos alentejanos são mais interessantes do que os demais das terras de além-mar... surgiu a tal história deveras perturbadora.



2.     Os 100 reais

Dizia ele: já reparou como o dinheiro é algo engraçado em sua circulação? Confessei, um pouco embaraçado com minha ignorância cabal, não ter dedicado muitos minutos de minha vida a essa questão tão enigmática. E começou... Certa vez, o pacato dono de um pequeno hotel em uma cidadezinha (provavelmente no interior gaúcho, entre Bento Gonçalves e Garibaldi) recebeu a visita de um viajante em busca de aposentos para pernoitar. Era um portovelhense exigente, habituado ao “filezinho” em termos de infraestrutura. Após receber a confirmação de que havia quarto disponível no local, arguiu se poderia dar uma verificada nas acomodações do recinto. Era importante saber se a pousada estaria em condições de receber seu corpinho cansado e extenuado após um dia de trabalho sem fim... O dono do hotel achou estranha tanta pompa, mas concordou. Entretanto, o nobre possível hóspede deveria deixar uma caução na portaria de 100 reais. O portovelhense não regateou, sacou uma nota de “garoupa” e a entregou ao gerente de plantão. Aí então, o possível hóspede e a funcionária saíram, calmamente, a fim de vistoriar as acomodações...

3.     De mão em mão


Logo em seguida ao fato da caução, o verdureiro passa pelo hotel e cobra do gerente as dívidas pendentes pelo fornecimento diário de diferentes legumes e verduras. Então, o rapaz pega os cem reais da caução, disponíveis sobre a mesa, e faz o pagamento. O verdureiro, um enorme alemão chamado Schultz, caminha até a farmácia e, sem pestanejar, quita uma dívida da semana anterior, na qual teve de tomar algumas injeções para se livrar de uma gripe maldita que não o deixava dormir há semanas. Entregou os cem reais e, mais curado ainda, saiu aliviado. O alegre farmacêutico Vitório Pretti fitou o dinheiro por alguns instantes e deixou escapar um pequeno sorriso pelo canto da boca. A nota azul já ia a caminho de seu bolso quando, não menos que de repente, Valleska Flex, travesti da região, adentrou de modo efusivo na farmácia do senhor Pretti. Usando um tom de voz acima da média, cobrava o arrebatador programa feito no último final de semana, lá pelas bandas de Bento Gonçalves, depois de uma cachaçada ao entardecer. Acometido de imagens mil em relação ao momento vivido, Vitório sacou rapidamente os cem reais e os entregou à dadivosa Valleska... saltitante como uma gazela, a nobre profissional retornou às ruas fazendo planos para gastar a  suada bufunfa. Sua alegria, entretanto, não durou tanto assim. Ao passar em frente ao Hotel do Senhor Manuel, o próprio estava à porta e não teve dúvidas: - Escuta cá, ó  menina Valleska, quando é que vais me pagar aquela dívida por ocupar meu principal quarto, com o seu “amigo”, por dois dias? Valleska não titubeou, com a honestidade a lhe aflorar a pele, entregou os cem reais ao velho Manuel, a quitar, pois, de vez, seu débito e, dessa forma, tornando-se apta a fazer novos... O dono do hotel, satisfeito com o sucesso de sua ofensiva, colocou os cem reais sobre o balcão da recepção. Nisso, vem saindo o portovelhense que fora vistoriar as acomodações. Não satisfeito com o visto para receber seu corpinho, sem pestanejar, pegou aqueles rodados cem reais de cima do balcão e partiu.

4.     Constatação

Quanto mais me vem à mente essa história, mais estupefato fico no tocante às relações econômicas de um país. Nossa, isso é algo realmente muito complexo, assustador e, normalmente, gerador de injustiças! Se levarmos essa situação microscópica para o macro universo da economia de um país, vemos como é intrigante esse mundo do dinheiro e de sua circulação. Em um intervalo de 30 minutos, a mesma nota de cem reais resolveu quatro situações pendentes e em desequilíbrio, tendo como pano de fundo diferentes contextos, e sem que o seu verdadeiro dono tivesse conhecimento disso. Ao deixar o dinheiro parado em um local (balcão do hotel), a economia do contexto fê-lo andar, gerou riqueza, estabilizou situações e retornou à origem para seguir outros destinos. Suponho ser algo assim: as relações de trabalho e sociais geram desequilíbrios diversos e, para saná-las, o dinheiro aparece, procura reequilibrar e parte... oh tristeza!

5.     Já pensou?

Com isso, podemos especular algumas coisas. Onde houver maior concentração de dinheiro, haverá maior capacidade de se gerar desequilíbrios a serem superados. Haverá mais capacidade de produção de riqueza e maior capacidade de concentração de riqueza. Ou seja, onde houver muito dinheiro, ter-se-á capacidade maior de multiplicá-lo sempre mais. Se esse pensamento tem algo de lógico e inteligível, podemos imaginar como o sistema bancário de um país gera riqueza a partir de desequilíbrios produzidos pela própria instituição. Um eficiente sistema bancário representa um poderoso veículo voltado a fomentar o desenvolvimento de um país, estado ou região, porém, também é um gerador de desequilíbrios. As nuances econômicas turvam a compreensão dos seres comuns. Logo, a necessária capacidade de intervenção do Estado no Sistema Financeiro de uma nação é política estratégica essencial. A cobrança de impostos de forma honesta e coerente com os princípios de arrecadação desse setor é vital para a sustentação dos espaços comuns da sociedade.
A propósito, acabei de dar “cenzão” ao pintor das grades de minha

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