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A controvérsia dos planos de saúde sem pronto-socorro: uma questão jurídica e social
Quarta-feira, 26 Fevereiro de 2025 - 11:16 | por Natália Soriani
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A proposta da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de introduzir um plano de saúde restrito a consultas e exames, sem a inclusão de serviços de pronto-socorro, anunciada recentemente pela autarquia, suscita debates acalorados no cenário jurídico brasileiro. A iniciativa, de acordo com o Procurador da República, Hilton Melo, pode colidir frontalmente com a legalidade vigente ao potencialmente ignorar garantias essenciais previstas pela legislação, colocando os beneficiários em situação vulnerável e levantando questões sobre o acesso universal à saúde, um direito fundamental.
De fato, segundo a Lei 9656/98, que regulamenta os planos de saúde no Brasil, é fundamental que os beneficiários tenham acesso a serviços de urgência e emergência. Essa lei estabelece um padrão mínimo de cobertura que visa proteger o consumidor em momentos críticos.
O novo plano sugerido pela ANS, conforme descrito, parece desafiar essa premissa crucial, ao limitar o escopo de cobertura exclusivamente a consultas e exames, excluindo, por exemplo, atendimentos em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) ou procedimentos cirúrgicos emergenciais.
Diante da ideia da ANS, o procurador Hilton Melo chama a atenção para a ausência de autorização legal para tais experimentações nos moldes propostos, algo que requereria uma revisão ou até mesmo a criação de novas regulamentações, possivelmente através de um projeto de lei que altere a Lei 9656/98 ou a edição de uma Medida Provisória (MP) com força de lei imediata, mas sujeita à aprovação do Congresso Nacional.
A preocupação não reside apenas na legalidade, mas também na prática dessa ideia da ANS. Existe um risco real de que essas sub segmentações nos planos de saúde venham a enfraquecer a oferta de produtos que atualmente asseguram internações de média e alta complexidade. Tal movimento poderia, alarmantemente, endossar uma desconexão entre o sistema de saúde suplementar e o Sistema Único de Saúde (SUS), sobrecarregando ainda mais este último. Por exemplo, um paciente com um plano restrito que necessite de uma cirurgia de emergência, como uma apendicectomia, seria inevitavelmente encaminhado ao SUS, aumentando a demanda e potencialmente comprometendo a qualidade do atendimento para todos os usuários.
Sem dúvidas, ao sugerir esse novo tipo de plano de saúde, a ANS mira no potencial existente no Brasil. Dos 213 milhões de brasileiros, aproximadamente 50 milhões possuem algum tipo de plano de saúde, o que significa que há um mercado demográfico potencial para esses produtos “populares”.
Contudo, lançar tais planos sem uma rede apropriada de suporte às emergências pode não só deslocar problemas para o SUS como pode também incitar um cenário onde planos de saúde de baixa cobertura se tornem padrão de mercado, com implicações graves para o atendimento hospitalar. Imagine, por exemplo, um idoso com um plano de saúde limitado que sofra um Acidente Vascular Cerebral (AVC). A ausência de cobertura para internação e tratamento intensivo poderia resultar em sequelas graves ou até mesmo óbito, evidenciando a vulnerabilidade dessa população.
Para mitigar os riscos, é imperativo que a ANS e o Ministério da Saúde adotem um papel fiscalizador ainda mais ativo. Deve-se garantir um quadro regulatório capaz de preservar a integridade tanto dos serviços públicos quanto privados, por meio de uma arquitetura sólida de compliance que contemple as inovações tecnológicas, como prontuários eletrônicos integrados entre os sistemas de saúde.
A implementação de um sistema de blockchain, por exemplo, poderia garantir a segurança e a transparência dos dados dos pacientes, o que facilitaria a comunicação entre os diferentes níveis de atenção à saúde e evitaria a duplicação de exames e procedimentos. Além disso, a criação de indicadores de qualidade e desempenho para os planos de saúde, com a divulgação pública dos resultados, poderia incentivar a concorrência e a melhoria dos serviços.
A vitalidade da saúde suplementar precisa coexistir de maneira harmoniosa e eficiente com o serviço público, de forma que nenhuma das partes seja negligenciada. A proposta atual, então, aponta para um futuro incerto, com implicações legais e sociais significativas. É essencial que os poderes públicos, juntamente com entidades não governamentais e o próprio setor privado discutam estratégias sustentáveis antes da implementação de qualquer mudança que, em sua gênese, carrega a promessa de uma dualidade funcional ao mesmo tempo provocativa e contingente.
É crucial considerar o impacto a longo prazo dessas decisões e garantir que o acesso à saúde continue sendo um direito garantido a todos os cidadãos brasileiros, independentemente de sua condição socioeconômica. Iniciativas como a proposta da ANS devem ser amplamente discutidas e rigorosamente analisadas, incluindo representantes dos consumidores, profissionais de saúde, operadoras de planos de saúde e órgãos de defesa do consumidor, para garantir um debate democrático e bem fundamentado, além de realizar estudos que identifiquem os impactos socioeconômicos e de saúde desta nova modalidade de plano, e que considerem diferentes cenários e grupos populacionais.
Mais além, é necessário reforçar os mecanismos de fiscalização para evitar abusos e garantir a aplicação correta da legislação existente, com a criação de canais de denúncia e a aplicação de sanções para as operadoras que descumprirem as normas.
Trata-se de uma discussão complexa, que sublinha a necessidade de uma abordagem cuidadosa e abrangente que não só respeite o texto de lei mas também assegure que todas as mudanças desempenhem um papel positivo no espectro dos cuidados de saúde no Brasil. A criação de um grupo de trabalho multidisciplinar, com a participação de juristas, economistas, médicos e representantes da sociedade civil poderia ser uma medida eficaz para garantir que todas as perspectivas sejam consideradas e que as decisões sejam tomadas de forma transparente e responsável.
*Natália Soriani é advogada especialista em Direito Médico e de Saúde, sócia do escritório Natália Soriani Advocacia