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A tsunami de demandas judiciais que advirão como efeitos do COVID-19

Quinta-feira, 02 Abril de 2020 - 15:26 | por Zênia Cernov


A tsunami de demandas judiciais que advirão como efeitos do COVID-19

Um caos público advém do COVID-19, e com ele, os efeitos sobre as relações interpessoais, governamentais, trabalhistas, contratuais, tributárias, eleitorais e todos os ramos do direito. O Estado, aí considerado em todas as suas esferas de atuação (federal, estadual e municipal), ao decretar o estado de calamidade pública para conter a pandemia, precisou de restringir direitos civis. E dessa restrição decorrem efeitos jurídicos importantes na vida das pessoas.
Como serão solucionados os efeitos da restrição de direitos decorrentes da pandemia? Certamente, uma tsunami de demandas judiciais em todas as esferas do direito haverão que formar, no futuro, um entendimento sedimentado sobre esses efeitos, e quais as responsabilidades deles decorrentes. No entanto, por ora, não há ainda em nosso país, sequer legislação suficiente, sequer posicionamento jurisprudencial a respeito dos efeitos de pandemias nas relações jurídicas e nas restrições de direitos. A advocacia brasileira já está se preparando para enfrentar essas questões em favor da sociedade.

De início, do medo advieram os Habeas Corpus para garantir aos presos em situação de risco (idade e doença pré-existente) o direito à prisão domiciliar; precedentes do Superior Tribunal de Justiça (HC 563.142, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca) e do Supremo Tribunal Federal (HC 182.596, Rel. Min. Gilmar Mendes) orientaram toda uma série de decisões a nível de outros Tribunais, e o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação nº 62/2020, garantindo que pessoas idosas, gestantes, ou com doenças que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, possam ter suas prisões convertidas em domiciliar ou concessão antecipada de saída dos regimes fechado e semiaberto.

Há toda uma série de relações contratuais, empresariais e pessoais que sofrem efeitos da pandemia. Sem pretender adotar uma linha de interpretação direta, exemplificamos algumas situações e as teses antagônicas que delas decorrem:

Seguros de vida: os seguros, em grande parte, excluem de sua cobertura as hipóteses de pandemia, epidemia e endemia; em artigo publicado no Site CONJUR, “Os seguros privados cobrem eventos associados a pandemias?”, THIAGO JUNQUEIRA reconhece que, embora permitido que as seguradoras insiram tais cláusulas de exclusão nas apólices, “Nas relações de consumo, o cumprimento do dever de informação pelo segurador (art. 30 c/c art. 46 do CDC) e a abusividade da cláusula de exclusão de responsabilidade disposta em um contrato por adesão (art. 51 do CDC) estão entre as questões a gerar mais embates. Para se ficar no exemplo da escola, o falecimento, na sequência de uma infecção pela COVID-19, provavelmente acabará sendo coberto pelos seguradores, a despeito de eventual cláusula que estipule o contrário” (disp. em https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/direito-civil-atual-seguros-privados-cobrem-eventos-associados-pandemias);

Planos de saúde: A princípio os planos de saúde não excluem de sua cobertura o atendimento aos pacientes com COVID-19, tendo inclusive a ANS (Agência Nacional de Saúde) incluído expressamente o exame de detecção do vírus na cobertura dos planos. Ao passo em que as operadoras de planos de saúde buscam medidas emergenciais que lhes garanta condições econômicas de enfrentar a pandemia, já surgem casos de discussão judicial sobre o alcance das coberturas dos planos. Em situação análoga, o TJSP declarou a nulidade de cláusula que excluía a cobertura em casos de epidemia e endemia a paciente acometida de dengue (Processo 1015768-61.2015.826.0506);

Cancelamento de viagem: o cancelamento gera impacto não só na passagem aérea, mas também nos hotéis, e algumas vezes em deslocamentos e passeios turísticos incluídos no pacote. A título de exemplo, quando do H1N1 o PROCON tomou posicionamento no sentido de que as pessoas não pagassem a multa pelo cancelamento das viagens, e já dentro da situação da COVID-19, tanto o PROCON contra o IDEC – Instituto de Defesa dos Dir. Consumidor também já se posicionaram no sentido de que o consumidor tem direito ao cancelamento; No entanto, as agências de viagens, hotéis, empresas aéreas e toda a vasta rede de prestadores de serviços invocam em seu favor a situação de força maior que lhes impediu de efetivar esses serviços;

Acidente do trabalho pela contaminação com COVID-19: os trabalhadores da área de saúde, seja de hospitais públicos ou particulares, estão sujeitos a serem infectados com o vírus; assim, em relação a estes, se existe o evento morte – ou subsiste por exemplo uma redução na capacidade para o trabalho, ou até mesmo a incapacidade, certamente haverá questionamento quanto à existência ou não de acidente do trabalho; O TST, por exemplo, já reconheceu acidente do trabalho em favor de enfermeira que foi infectada com HIN1 e veio a óbito (RR 100800-30.2011.517.0009);

Abertura da empresa para o público: já surgem casos de empresas que, ainda na vigência das medidas restritivas, estão procurando o Judiciário para garantir o direito de exercerem suas atividades adotando as mesmas medidas de proteção previstas para as demais empresas às quais foi garantido o funcionamento; no exemplo do Estado de Rondônia, foram relacionadas diversas atividades como açougues, atacadistas, distribuidoras, lotéricas, veterinários, pet-shops, obras e serviços de engenharia, autopeças, hotéis, escritórios de contabilidade, materiais de construção etc; o Decreto determinou que nesses estabelecimentos fossem adotadas algumas medidas de prevenção: dispensar a presença física dos trabalhadores em grupo de risco; disponibilizar álcool em gel; limitar a área de circulação interna dos clientes, etc; ocorre que há diversas empresas que prestam serviços análogos, que podem se considerar enquadradas como essencial e dispostas a atender a essas medidas de prevenção, de tal forma que já subsistem questionamentos ao alcance do Decreto, aos fundamentos que justificam as diferenças de tratamento e à suposta ilegalidade da restrição;

Anulação de multa: a aplicação de multas por descumprimento aos decretos restritivos de exercício das atividades já estão sofrendo questionamentos em todo o país; em alguns casos, o Decreto restritivo não impõe expressamente essa penalidade;

Defesa criminal: os Decretos restritivos a direitos civis, em sua grande maioria, cominam aos cidadãos que o descumprimento caracteriza a incidência do art. 268 do Código Penal (Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa), e essa cominação já está gerando o questionamento de sua legalidade e a defesa quanto à efetiva incidência no dispositivo;

Direito de não trabalhar: o Poder judiciário já está sendo acionado por trabalhadores e servidores públicos, em demandas individuais e coletivas, que pleiteiam a garantia do direito de não trabalhar pessoalmente, por integrarem o grupo de risco (idade, doenças pré-existentes, etc); os pleitos vão desde garantir o teletrabalho (homeoffice), até a dispensa quando aquele não é possível;

Indenização por morte em hospitais: infelizmente nosso país não é nenhum exemplo em termos de qualidade dos serviços médico-hospitalares, nem mesmo em alguns hospitais particulares, e menos ainda em hospitais públicos, e certamente haverão casos de morte por falta de um atendimento adequado que demandarão ações indenizatórios;

Prorrogação de vencimento de encargos: já há precedentes de liminares garantindo a prorrogação do vencimento de encargos tributários e financiamentos bancários.

A pandemia é uma situação na qual todos os brasileiros sofrerão graves perdas, e nesse cenário caótico, novas questões jurídicas estão surgindo, criando um novo cenário na história da Justiça brasileira.

E é justamente por se tratarem de teses novas, que o advogado também terá que valorizar a conciliação como forma de solução dos conflitos. A advocacia não é treinada para conciliar, desde as universidades e faculdades são ensinados a litigar. Ocorre que o advogado pode – e deve – inserir no seu contrato a opção de solucionar a questão por conciliação, sem prejuízo dos seus honorários. E muitas vezes pode, sim, solucionar por acordo. Um evento que foi cancelado, por exemplo (uma festa de formatura), não é difícil que se reúnam numa sala o advogado dos formandos com o advogado da empresa organizadora do evento, e cheguem a um consenso; um pacote de viagens, também é bastante provável que o cliente não consiga um acordo com a agência de viagens, mas o advogado do cliente com o advogado da agência cheguem rapidamente a esse consenso; quando os advogados se reúnem, justamente pelo conhecimento técnico que têm, sobre o que podem e o que não podem conseguir obter em termos de vitória judicial, os advogados conseguem conciliar interesses que as partes não conseguem.

Em suma, a advocacia já se prepara para enfrentar os tempos de crise e os efeitos da pandemia, criando novas teses, defendendo novos pontos de vista, e estarão participando da história que formará, em breve, um entendimento sedimentado sobre os efeitos das pandemias nas relações jurídicas. 

Zênia Cernov é advogada

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