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Balzac e o Novo Código de Processo Penal Brasileiro

Terça-feira, 25 Maio de 2021 - 17:19 | Promotor Jefferson Marques Costa


Balzac e o Novo Código de Processo Penal Brasileiro

Honoré de Balzac, em uma de suas primeiras obras publicadas, conhecida como “Código dos Homens Honestos1” ou “A arte de não se deixar enganar pelos larápios”, fala muito sobre a reforma do Código de Processo Penal que alguns pretendem aprovar a toque de caixa no Congresso Nacional.

O livro, embora trate sobre os crimes ligados ao dinheiro, sem sombra de dúvidas a mesma lógica pode ser aplicada a quaisquer outros delitos.

Já nas primeiras páginas o autor diz que: “Sejam as leis severas ou brandas, o número de ladrões não diminui; essa realidade nos leva a confessar que a ferida é incurável, que o único remédio consiste em identificar todas as astúcias, e é exatamente o que tentamos fazer.”

O Brasil é um país notoriamente conhecido pelo alto índice de criminalidade e, curiosamente, tem inúmeras leis muito benéficas aos réus em geral (prescrições com baixo período de tempo, crimes graves com penas baixas, progressões de regimes absurdas; remições de penas por motivos questionáveis, visitas íntimas para presos e por aí vai).

E o que tem a ver o texto balzaquiano com essas benesses legais do Brasil? Ora, como o próprio autor relata, o crime e o criminoso jamais deixarão de existir, e cabe então aos cidadãos de bem identificar suas astúcias para podermos nos livrar desses males.

E certamente esse projeto do novo Código de Processo Penal-CPP é um verdadeiro estratagema a favor do crime e do criminoso. Não vou cansar o leitor com minúcias sobre as barbaridades trazidas pelo projeto de lei 8.045/2010 da Câmara dos Deputados, quanto a isso há farto material na internet sobre o tema.

O que gostaria de trazer à reflexão neste pequeno texto é a profunda e triste proximidade entre um texto do início do século XIX com uma realidade dois séculos à frente. Balzac, um dos escritores que melhor expôs o comportamento humano em obras literárias, nos esfrega na cara uma realidade que às vezes não queremos ver, por doída que é, mas que, assim como o remédio amargo que tomamos no momento de cólera, é preciso enfrentar para curar a chaga.

No texto do livro, referindo-se a uma reunião do “Parlamento de ladrões de Londres”, o seu presidente, que dirigia a palavra aos demais membros ladrões, dizia: “Os honestos, bem como os ladrões, mas sobretudo os ladrões, não devem criticar as leis que protegem a propriedade; são elas nosso maior apoio – bradou (silêncio! silêncio!) -, pois, de maneira geral, dão ao público uma falsa segurança e nos proporcionam os meios de exercer nossa profissão. ... E um ano de detenção poderia transformar-se em um tiro de pistola que nos roubaria a vida; devemos felicitar-nos sempre pela proteção que nos é garantida pelos juízes e pelas leis.

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É bem verdade que as galeras2 existem, bem como a forca; que alguns de nós são até deportados; mas, meus caros gentlemen, temos de reconhcer a previdência do legislador e o carinho particular com que nos trata. ”

De fato o texto do nobre autor francês encaixa como uma luva na situação pela qual passamos hoje, haja vista o carinho materno com que o novo CPP, se aprovado, irá tratar os malfeitores.

Continua o texto: “Hoje, segundo os textos das leis, dispomos de mil maneiras de escapar, o que não aconteceria se os cidadão tivessem o direito de defender-se. Bendigamos o legislador que declarou que, antes de nos castigar, era necessário provar o delito.”

Não bastassem as diversas brechas legais que podem ajudar criminosos a escaparem das punições, as “mil maneiras” de Balzac se transformarão em “mil e tantas”, vez que o projeto 8.045/10 é terreno fértil para nulidades serem plantadas, com garantia de fartas sacas de impunidade colhidas a cada final de safra, como se já não fôssemos um dos maiores produtores dessa triste erva daninha.

Na dita sessão do “Parlamento de Ladrões”, “a ordem do dia era votar agradecimentos a serem apresentados aos juízes que propunham a supressão do costume de publicar os relatórios policiais.” Não se queria, obviamente, que a transparência trazida por tais relatórios prejudicassema as “atividades laboriosas” dos gatunos.

Continua o ácido e previdente autor: “Não é correto expor ao mundo inteiro os planos engenhosos que concebemos com tanto esforço. Arquitetar um estratagema nos custa meses de trabalho, e um jornalistazinho qualquer, que só sabe mentir, nos impede de colher os frutos. Votemos a moção de agradecimento aos autores da proposta em questão, e sugiro que compremos um terreno para o mais ilustre de nós e o façamos membro do parlamento, para que lá possa defender nossos direitos e nosos interesses... A proposta foi aclamada por unanimidade.”

Qualquer semelhança com nossa realidade não é dom futurológico de Balzac. É apenas, como dito no início, um choque de realidade que temos que enfrentar sobre a natureza humana. Quem serão os de nosso tempo que votarão a moção de agradecimento aos autores da proposta de CPP que se avizinha? Certamente os cidadãos de bem e trabalhadores do nosso sofrido país é que não serão. As famílias das 60 mil pessoas que são vítimas de homicídios todos os anos (só no Brasil) é que não serão também. Da mesma forma os três “Ps” (pobres, pretos e putas), que diuturnamente são vítimas das mais variadas formas de injustiças e crimes, discriminações odiosas, homossexuais que são mortos por pessoas ou grupos extremistas simplesmente pelo fato de serem homossexuais, enfim, investidas contra as já debilitadas honras de algumas dessas pessoas, que são vulneráveis pela condição econômica, discrimandas pela cor da pele que possuem, pela atividade que desenvolvem como meio de vida ou pela orientação sexual. Isso sem falar nos feminicídios (mortes de mulheres em situação de violência doméstica). Mata-se, rouba-se, estupra-se, a torto e a direito, mormente esses grupos de pessoas que têm menos chance de se defender ou já têm um histórico de perseguição discriminatória. E o defensor dessas vítimas, o defensor da sociedade no processo penal, que é o Promotor de Justiça, estará cada vez mais de mãos atadas para buscar a Justiça no caso concreto, tudo por conta de diversos entraves causados por este embrião de código que o Congresso Nacional está gestando e que alguns pretendem dar à luz. Esta é uma situção rara em que um aborto deve ser aplaudido, pois não é um aborto de uma vida humana, é um aborto de um embrião do mal, de um projeto de Código que, se for aprovado, aí sim teremos uma chacina de vidas humanas causada pela dificuldade enorme em punir aqueles que ferem nossas leis. E o melhor remédio contra esse tipo de maldade legislativa é informação, em doses cavalares, pois não há contra-indicação, em especial com ampla divulgação nas mídias sociais, grupos de whatsapp, jornais, revistas etc.

Em um país onde são assassinadas 60 mil pessoas todos os anos (na guerra do Vietnã os norte-americanos perderam cerca de 58 mil soldados), sem contar as pessoas desaparecidas que nunca mais voltam para casa e que provavelmente também morreram (cifra oculta), estupros, roubos, lesões corporais domésticas etc, não se pode ter espaço para pôr o órgão defensor da sociedade no processo penal, que é o Ministério Público, em situação manifestamente diminuída em relação ao acusado. A paridade de armas processuais é princípio básico em qualquer regime jurídico que se preze.

Não resta dúvida que este projeto de novo CPP, tal qual nos desfiles das escolas de samba, faz um belíssimo papel de mestre-sala e porta-bandeira, dizendo-se detentor do estandarte da democracia e da celeridade processual. Ocorre que a bandeira levantada, ao contrário do que parece, é um verdadeiro carro abre-alas da impunidade, por onde passarão as alas dos mais simples ladrões de galinhas até os mais perigosos assassinos. Como diz o nobre colega do MP Marcus Alexandre de Oliveira Rodrigues (também trincheireiro velho do Tribunal do Júri, hoje em Ariquemes/RO): “Esse projeto de código é verdadeiro lobo em pele de cordeiro”.

É evidente que o nosso Congresso Nacional não se tornou um antro de perdição, onde todos que lá estão são conluiados com o malfeito, até porque se fosse diferente, tal projeto já estaria aprovado. Nosso Parlamento é honrado e tem uma história a zelar, pois já foi ocupado por ilustres pessoas como Rui Barbosa, Juscelino Kubitschek, Duque de Caxias, Afonso Arinos de Melo Franco, Teotônio Vilela e outros, e hoje ainda há muitas pessoas sérias ali, que seguram o rojão nesses momentos de crise.

Voltando ao livro citado, Balzac faz um último aviso: “O que se passou nessa reunião memorável prova que o roubo é uma profissão e deve servir de alerta às pessoas honestas para que estejam sempre vigilantes.”

A vigília é nossa única esperança e arma neste momento. E a informação, tal como o alerta pretendido com o presente texto, é o melhor instrumento para a população não ser ludibriada com uma retórica sobre um projeto de lei que vende uma coisa e entrega outra. Digamos não ao estelionato legislativo! O povo não pode ir ao Congresso Nacional buscar lã e sair tosado. Temos que ter o amparo de nossa Casa Legislativa maior.

Finalizo dizendo que as semelhanças entre o conto narrado por Balzac e a nossa situação atual são tantas, que o gênio francês prova, mais uma vez, que sua obra está mais viva do que nunca e que a natureza e os hábitos humanos pouco mudaram com o tempo.

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1A versão utilizada como base para este texto é da editora Nova Fronteira; tradução Léa Novaes. Rio de Janeiro, 2015.
2Expressão usada para se referir ao cárcere, prisão.


* Jefferson Marques Costa é Promotor de Justiça titular do Tribunal do Júri de Porto Velho; Especialista em Prevenção e Combate à Corrupção pela Universidade Estácio; Mestrando em Direito pela UNIVALI.

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