Artigos
Titanic e a Covid-19 em Rondônia: estamos afundando?
Sexta-feira, 05 Junho de 2020 - 08:26 | por Estêvão Rafael Fernandes
Todo mundo conhece a história ou já viu o filme (aquele, com o Leonardo Di Caprio e música da Celine Dion). Em uma noite fria em abril de 1912 o capitão resolve acelerar para chegar antes a Nova Iorque, seu destino, antes do previsto. No meio do caminho, surge um iceberg que afunda o Titanic em algumas horas: dois terços das pessoas a bordo morrem, sendo a imensa maioria de tripulantes e homens na terceira classe do navio.
Depois que o filme acaba, enxugadas as lágrimas, a primeira coisa que a gente se pergunta é: como aquilo foi possível!? Sério... Ninguém percebeu que eles não tinham botes salva-vidas para todos a bordo? O que o capitão Smith tinha na cabeça, afinal, para mandar acelerar o navio estando em uma área repleta de icebergs? Como eles puderam ser tão burros, gente? Sério?
Mas tem mais, e isso o filme não mostra. Segundo Louise Patten, neta do segundo oficial do Titanic, relatou há alguns anos à agência de notícia Reuters, dois erros cometidos foram fundamentais para que o navio afundasse mais rápido. Primeiro erro: ao avistarem a imensa pedra de gelo no mar, o piloto, Robert Hitchins entrou em pânico e virou para o lado errado. O segundo erro: o presidente da empresa White Star, J. Bruce Ismay, a bordo, teria convencido o capitão a seguir navegando, o que teria feito o navio afundar mais rápido. Não fosse isso, teria havido tempo de o resgate chegar, salvando aquelas vidas.
O que você teria feito, se fosse o capitão do Titanic? A primeira coisa, óbvia, seria: não saio do porto sem ter botes para todos e equipamento que garanta a vida das pessoas a bordo. Outra: se aqui tem iceberg, vamos com cuidado, para dar tempo de fazer as manobras necessárias. Se, depois disso tudo, ainda colidirmos com alguma coisa, desligamos o motor e pensamos em como salvar o máximo de vidas possível. Certo?
Corta para 2020. Sem Di Caprio, sem Celine Dion, sem iceberg feito por computador.
Há meses os cientistas, médicos e pesquisadores do mundo têm alertado para um novo vírus com alto poder de letalidade e transmissível a uma velocidade altíssima. Gradualmente, vimos esse perigo se aproximando e, tal qual o capitão do barco, seguimos a vida normalmente. No fundo, acho que era um sentimento de que o iceberg ia derreter sozinho, ou se desviaria da gente. Fato é que colidimos de frente e o barco está afundando. Nossos botes salva-vidas são os leitos de UTI, colapsados. Aliás, estamos naquele momento do filme no qual os violinos tocam e boa parte dos passageiros sequer entendeu o que está acontecendo. Sabe quando o navio começa a envergar até rachar? É o que vai acontecer, caso o barco não pare. E isso tem nome: lockdown.
O Estado buscou a estratégia de fazer o barco seguir, mas isso não diminuiu a transmissão da doença. Não testamos em massa, nossa estratégia de educação e comunicação em saúde foi falha. A fiscalização em torno das coronafests e aglomerações, vistas no início do surto em Rondônia, há alguns meses, não é mais percebida. O que o governo não percebe é que, caso medidas mais austeras tivessem sido tomadas há alguns meses, a vida agora estaria voltando ao normal e a economia, aos poucos, se recuperando. Teríamos botes para todos, estaríamos pensando no resgate aos empreendedores e desempregados e, gradualmente, nossa saúde mental estaria voltando ao normal. Choraríamos os mortos que se foram, sabendo, no entanto, que nossas famílias estariam bem e seguras.
Podemos restringir movimentação de pessoas, mantendo apenas serviços essenciais e delivery? Podemos pensar formas de recuperar a economia e a educação após a pandemia, com planejamento e de forma sustentável?
Podemos aprender com os erros cometidos nestes primeiros meses de pandemia, a partir da ampla experiência que nossos cientistas têm com doenças endêmicas, como malária? Podemos envolver a sociedade de modo a engajá-la efetivamente nessa luta? Podemos tomar uma medida radical que dure alguns dias, em vez de fingir normalidade enquanto a lista de mortos só aumenta? Podemos parar de insistir em imunidade de rebanho e na politização da doença e começar a gerir a crise, de modo ativo e planejado e não apenas reativo? Penso que sim.
O que não podemos é fingir que o barco não está afundando, porque nem as vidas, nem a economia, estão sendo salvas. As primeiras rachaduras já surgiram no convés, mas não afundamos.
Ainda.
* Estêvão Rafael Fernandes, é antropólogo, professor no Departamento de Ciências Sociais da UNIR em Porto Velho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e pós-doutor pela Brown University (EUA)