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Abortamento de anencéfalo
Segunda-feira, 28 Novembro de 2011 - 12:10 | Cândido Ocampo
Em 2004 o Conselho Federal de Medicina, no uso de suas prerrogativas instituídas pela Lei 3.268/57, através da Resolução Nº 1.752/04, autorizava eticamente os médicos, mediante consentimento formal e prévio dos pais, a utilizarem órgãos e tecidos de anencéfalos para transplante.
Anencefalia é a ausência total ou parcial do hemisfério cerebral, o que significa dizer que o recém-nato é em verdade um natimorto, pois a ausência do cérebro inviabiliza sua vida. Na época a resolução causou polêmica e foi objeto de demandas judiciais. Fundamentalistas religiosos ficaram horrorizados e diziam que a norma feria seus valores morais, esquecendo que os moderados e não religiosos também defendem princípios. Os intolerantes, ensimesmados por definição, também não consideravam (e ainda não consideram) o extremo sofrimento de uma mãe em carregar em seu ventre por nove intermináveis meses um filho que sabe jamais terá, numa flagrante ofensa à sua dignidade.
Questões de ordem religiosa e espiritual à parte, não há dúvida que a vida deve ser sempre o móvel de todas as ações do homem. Prestigiar a vida é garantir a perpetuação da espécie e a plenitude da dignidade de toda a sociedade humana, e principalmente cumprir os mandamentos emanados da ordem jurídica e axiológica vigente. Mesmo nas sociedades de seres irracionais, onde os impulsos inexoráveis do instinto tornam seus membros incapazes de mudar seus destinos, ainda assim o estigma da sobrevivência é sem dúvida o fator determinante de seus movimentos. No entanto, o sectarismo religioso, fruto do egoísmo tanto individual quanto coletivo, não pode ser um estorvo à evolução social.
Mesmo diante das tragédias que a natureza nos impõe, é necessário juntarmos forças e extrair o menor benefício que seja. E sendo este benefício voltado para a vida, com certeza a missão humana do homem estará sendo cumprida. Nesse sentido a Resolução do Conselho Federal de Medicina, por questões óbvias de compatibilidade, orientava que as crianças deviam ser os principais destinatários dos órgãos a serem doados.
No entanto, estudos mostraram os precários resultados obtidos com os órgãos transplantados, razão pela qual em 2010 a resolução referida foi revogada. Não obstante, a questão estava posta em discussão e os tribunais brasileiros continuaram e continuam a proferir decisões envolvendo a anencefalia. Na orla hospitalar, não raro médicos se defrontam com a tormentosa questão de gestantes que, diante do diagnóstico de anencefalia de seus fetos, desejam a interrupção da gravidez.
Apesar de manifestações de peso no mundo jurídico entender que a interrupção da gravidez nesses casos não caracteriza aborto, tendo em vista que fetos anencefálicos mesmo estando biologicamente vivos (porque feito de células e tecidos) não gozam de proteção jurídica ante a total ausência de expectativa de vida fora do útero, orientamos que não devem os médicos interromper gravidez sem autorização judicial específica, evitando assim eventuais questionamentos.
O autor é advogado atuante no ramo do Direito Médico.
candidoofernandes@bol.com.br