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O Assassino: Chico Mendes foi um mártir e eu também - Por Altino Machado
Segunda-feira, 22 Dezembro de 2008 - 10:01 | Altino Machado
A chuva fina do inverno amazônico teimava ao meio-dia de quarta-feira sobre a fazenda Paraná, na BR-317, em Xapuri (AC). Do alto de seu cavalo, um mensageiro avisa que Darly Alves da Silva, 73, condenado a 19 anos de prisão como mandante do assassinato do líder sindical e ecologista Chico Mendes, aceita atender ao Blog da Amazônia.
Saúda os presentes com um boa tarde e sobe firme a escada de três degraus. Na varanda, mais protegido da chuva, retira de dentro da camisa um saco plástico com a Bíblia Sagrada dentro.
Seus passos são cadenciados e firmes sobre o trecho úmido da verdejante pastagem de uma de suas três fazendas. Elas totalizam pouco mais de três mil hectares. Usando seu indefectível boné, camisa azul rasgada nas costas e uma calça com o zíper danificado, Darly Alves da Silva abre o portão da cerca que impede o acesso dos bois ao quintal da casa.
Saúda os presentes com um boa tarde e sobe firme a escada de três degraus. Na varanda, mais protegido da chuva, retira de dentro da camisa um saco plástico com a Bíblia Sagrada dentro.
- Essa é a minha arma - avisa.
Mas o velho fazendeiro ainda parece acuado, como se não estivesse dentro de sua própria casa. Senta-se no banco de madeira e logo avisa que não dará entrevista.
Retira do bolso da camisa a carteira de presidiário, onde consta uma anotação logo nas primeiras páginas: Término provável da pena: 22 de julho de 2015″.
Responde de modo gentil perguntas banais durante mais de três horas de conversa sobre o Acre, Chico Mendes, família, religião e até a respeito de outros implicados no complô que resultou no assassinato do homem mais famoso do Acre.
Quando a fera aparenta estar mais relaxada e falante, enfio a mão no bolso direito da capa de chuva. Tateio o mini-gravador, mas a operação se torna um desastre: aperto a tecla play em vez de rec. E o áudio de uma gravação me denuncia.
- Você está gravando. Avisei que não quero entrevista - fala com firmeza, enquanto tento me desculpar dizendo que apenas procurava um isqueiro.
Mais adiante, quando Darly Alves da Silva parece ainda mais relaxado, peço-lhe permissão para fazer uma pergunta incômoda. Ele autoriza.
- O que o sr. faria se pudesse voltar 20 anos no tempo?
- Águas passadas não movem moinho - responde secamente.
Sentado ao lado dele, curvo-me para abrir a mochila. Puxo o caderno de anotação e escrevo a resposta. Os olhos dele mudam de cor, encara-me sisudo, e vira-se para o outro lado do banco, onde está o radialista Raimari Cardoso, do blog Xapuri Agora, que ajudou-me a ter acesso ao recanto da família mais temida da região.
- Eu vim aqui atender a você, Raimari. Não sabia que você estava com um comparsa. Eu disse que não quero entrevista - afirma Darli, enquanto ameaça levantar-se para ir embora. Tive que me desculpar mais uma vez, repouso a mão sobre a coxa direita dele, fecho o caderno e o devolvo à mochila.
E haja mais tempo para a esgrima de mudar o rumo da prosa e outra vez deixar o dono da casa à vontade. Pergunto pelo livro que Darly tem intenção de publicar caso encontre alguém disposto a escrever sua biografia. Darly volta a se empolgar.
- Tenho esse sonho, sim. Preciso ganhar um dinheiro a mais. Eu acho que minha história vai interessar muito ao estrangeiro.
Darly também se entusiasma quando fala de sua nova arma, a Bíblia Sagrada. Ele ainda não foi batizado pelo fogo, mas está disposto a tratar disso logo. Quer cumprir a prisão domiciliar, obter a liberdade condicional e mudar de vez para Brasília. Ganhou gosto pelo lugar após o tempo que passou no presídio da Papuda.
- Eu quero minha salvação. Em Brasília, posso freqüentar todo dia a igreja Deus é mistério. É pentecostal. O pastor de lá era da Deus é Amor - explica.
Outro momento de empolgação e relaxamento é quando menciono o nome do ex-governador Jorge Viana, defensor de que a área da fazenda Paraná seja desapropriada e transformada em pólo-agroflorestal para assentamento de colonos.
- O Jorge Viana devia ser meu amigo, não é? Ele é bom. Mas eu acho melhor, gosto mais mesmo, é do irmão dele, o Tião Viana. Ele tem boas idéias - revela.
Em novembro, um filho de Darly, de 18 anos, matou a mulher mais jovem do pai dele dentro da fazenda Paraná. Enquanto repousava numa rede na varanda da casa, o jovem se aproximou e disparou um tiro de espingarda na nuca dela.
- Não perdôo ele de jeito nenhum. Se eu não estivesse com a mão sobre a Bíblia Sagrada, eu mesmo iria matar aquele covarde. O que ele fez foi uma covardia muito grande. Por causa desse crime, tem dias que eu me ajoelho e grito, implorando justiça a Deus - relata o fazendeiro com a voz embargada.
O celular toca. Do outro lado da linha, Elenira Mendes reclama que passei em Xapuri e não a procurei. Prometo voltar mais tarde. Ela quer saber aonde estou. Ao responder que estou entrevistando Darly, a filha de Chico Mendes, que tinha quatro anos quando viu o pai morrer tentando lhe dizer alguma coisa, sugere:
- O Darci [filho de Darly condenado a 19 anos de prisão com autor do tiro que matou Chico Mendes] prometeu que iria revelar os nomes dos demais mandantes quando o crime completasse 20 anos. Pergunta pro seu Darly quais eram os outros mandantes.
Peço mais uma vez permissão para fazer uma pergunta incômoda. Darly aceita e responde:
- Não lembro se o Darci prometeu isso. Eu perguntei muitas vezes a mesma coisa, mas ele sempre ficou calado. Eu dizia que poderia ser beneficiado se ele revelasse quem mandou matar o Chico Mendes, mas nada. O que posso dizer é que nunca paguei advogado pro Darci. Alguém pagou. Não sei se foi o falecido Gastão Mota, o falecido ex-prefeito Adalberto Aragão, coronel Chicão ou outro qualquer - afirma.
Quando estava perto de três horas de conversa, voltei a insistir com Darly em defesa da entrevista:
- Respeito que o senhor não queira ser entrevistado, mas quero ao menos provar que estive aqui tentando a entrevista. Aceita que eu grave o sr. justificando a sua recusa?
- Tudo bem, isso eu posso fazer. Sei que você está trabalhando. Com a gravação você pode mostrar pro chefe da sua revista que esteve comigo na fazenda Paraná e foi bem recebido.
Após 20 anos do assassinato de Chico Mendes, leia a entrevista a seguir, gravada em vídeo e áudio:
O senhor não está disposto a gravar entrevista porque aconteceram coisas ruins, como a morte de sua mulher, assassinada na fazenda Paraná por um de seus filhos?
É, rapaz. Estou muito traumatizado porque o que aconteceu na minha vida foi uma tragédia muito triste. Aí eu estou despreparado para conversar qualquer tipo de assunto. Esse problema que aconteceu aqui, recente, deixou eu muito triste. Além de sentir a falta da pessoa que foi morta injustamente pelo meu filho, um covarde que matou ela, sem ter nenhuma razão, aí eu sinto muito pelos dois filhos dela, que ela ama demais, o Júnior e a Ana. (choro). Então eu não tenho como falar. Agora
O senhor está com quantos anos?
Estou dentro de 73. Vou fazer ano em maio.
Essa é uma região próspera?
Quando o senhor chegou aqui era jovem e tinha muitos sonhos, não é?
Eu cheguei no Acre em 74. Meu sonho é que Tinha uma revista do Dantinha [ ex-governador Wanderley Dantas, cuja propaganda dizia que "o Acre é um sertão sem seca e um sul sem geada"] que estava chamando os sulistas para cá. Eu vim com 12 famílias do Paraná com a intenção de plantar café. Cheguei a plantar 12 mil covas, mas aí saiu um sapezal. E aqui chovia muito naquela época e a gente não dava conta, o fogo queimou. Aí virei para a pecuária. Também fui testa-de-ferro e tomei muito prejuízo. Plantei colonhão, não deu; plantei jaraguá, não deu; plantei a braquiarinha, também não deu. Veio o braquiarão, aí foi que melhorou. Mas sempre trabalhando 20, 10 homens diretamente. Vendi muito arroz. Comprava castanha, comprava borracha, negociava com seringueiro. Então eu levava uma vida estável. Não sei se é por um destino ou se é por uma missão, foi dada essa reviravolta na minha vida. Para mim é um sonho que nem acredito - o que falam de mim, que nunca fiz essas coisas de covardia. Sempre tive o temor de Deus, sempre vivo do meu suor. Essa propriedade, quando cheguei aqui, não tinha nada, nada feito. Isso aqui foi feito com o meu suor, não tem nada do sangue de ninguém, nem de roubo. Eu acredito que eu sou muito injustiçado. A minha resposta que tenho para falar com você é esta.
O senhor foi entrevistado recentemente pela Rede Globo. Quando aconteceu aquela entrevista?
Aquela entrevista foi quando peguei prisão domiciliar, não tenho bem certeza, no mês de janeiro, pois depois, parece que no dia 2 de março, foi que voltei para lá [prisão]. Em janeiro, eu ia atravessando a porteira, quando parou um táxi. Como tenho um sobrinho que é taxista, cheguei nele. E eles me filmando, me filmando. Eu não queria dar entrevista, mas acabei dando, falando aquela conversa que falei [ninguém matou ele, Chico Mendes foi quem se matou]. Se agravou alguém...
O senhor se arrepende daquilo que o senhor disse?
Eu falei assim, sem pensar. Eu não quero defamar o Chico Mendes porque não quero ofender a família dele. O modo que falei foi encarando as Escrituras Sagradas: aquele que ira a ira do seu irmão comete homicídio. O Chico Mendes irava a ira de todos os fazendeiros, de todos os trabalhadores, porque o Chico Mendes não era o Sindicato dos Trabalhadores. Ele era do sindicato de não trabalhar. Ele protegia a floresta, como eu também protejo e quero dar todo apoio. Se for possível reflorestar qualquer árvore, estou disposto. Estou disposto a trabalhar, a respeitar a lei. Falei aquilo encarado na justiça. Quem quiser ler, a Bíblia está dizendo: Não matarás; não irar a ira do seu irmão; aquele que ira a ira do seu irmão, comete homicídio. Não que eu disse que ele se matou, ele mesmo, com as próprias mão. Ele não era homem para isso.
Então teve gente que interpretou mal.
Que interpretou mal e eu peço desculpas para a família. Eu falei encarado nas Escrituras Sagradas: a mulher é subordinada ao marido e o marido tem que respeitar a mulher, o filho também tem que respeitar o pai. E todo homicida não herdará o reino dos céus. Aquele que mexe na ira do próximo, comete homicídio. Não é só quem mata, não. Eu falei essa causa assim, no meu entender. Sobre a família Chico Mendes, peço que Deus ajude a eles, que eles possam estudar. Não tenho inveja deles. Já fiquei sabendo o irmão dele acredita que não devo nada nessa morte. Confio muito que eles não têm nada contra mim. Acho que eles devem saber mais ou menos que eu estava negociando a terra do Cachoeira lá em Brasília. Eu sabia que se matasse uma pessoa não ia negociar vendendo bem vendido. Aí mataram ele e tomei muito prejuízo. Não recebi nada.
Perguntei antes o que o senhor faria se pudesse voltar no tempo. O senhor pareceu não gostar da pergunta e havia respondido que águas passadas não movem moinhos.
No meu entender, tudo que a faz Vamos supor que eu sei que fosse acontecer isso, que eu fosse cair nisso, que eu penso que é até uma missão Quer dizer, se há 20 anos para trás, se eu tivesse me mudado, ido embora, sendo que eu trouxe muito dinheiro pro Acre naquela época e não daria para mim tirar nem 20% do meu dinheiro, pois as terras aqui não valiam nada. A terra não tinha valor. Aí se eu tivesse, naquele ano, há 20 anos para trás, não tinha botado a minha família para sofrer. Eu fiquei servindo de estopim dos outros. Eu quero encerrar essas perguntas tuas porque não estou preparado para responder suas perguntas.
O sr. tem planos de manter aqui, de trabalhar, de tocar essa fazenda? O sr. ainda tem sonhos, esperanças?
Sonho de trabalhar toda a vida eu tive e trabalho. A gente quando está vivo tem esperança de trabalhar e fazer alguma coisa, né? Mas eu tenho vontade de ir embora. Estou me preparando para ir embora. Eu não quero que o pessoal fique usando o meu nome toda hora com defamação. Vou embora só por isso. Estou procurando a igreja. Quero um lugar onde eu possa ir pra igreja todo dia. Quero esquecer do passado.
O sr. continua lendo o Evangelho?
Sempre. Todo dia eu leio os Sarmos. Leio toda parte.
Toda a sua família sempre foi muito evangélica.
O meu pai era evangélico.
O que acha da idéia de transformarem a Fazenda Paraná num pólo-agroflorestal?
Acho que se o governo entrar em acordo com nós e pagar para nós um valor que a gente não tenha prejuízo A gente está de acordo a negociar porque terra a gente compra em todo canto. Trabalhar a gente trabalha em todo canto.
E Darci? O sr. disse que não tem tido contato com ele.
Está com quase três anos que estou aqui, nesta justiça, né? Não tenho falado com ele, não.
O que o sr. sente quando vê os filhos do Chico Mendes? Elenira já disse que não sente rancor. O que acha disso?
Acredito que nenhum deles tem. Quero que nenhum deles tenha, conforme eu não tenho. Eu peço a Deus que guarde a todos eles do mal. Que eles sigam a carreira deles, que se formem. É isso o que espero para a família dele, para todos eles. De mim não esperem mal, nem de minha família. Nenhum deles.
Esses anos de prisão lhe trouxeram muito sofrimento?
Um homem acostumado a trabalhar das 7 da manhã às 7 da noite, a progredir, se ver defamadocomo bandido é muito triste. Eu nunca fui bandido, graças a Deus. Toda a vida fui um homem honesto, trabalhador, cumpridor de meus deveres.
E o que o sr. pensa de nós que somos a imprensa?
A imprensa pronuncia o que os outros fala. Só que não é investigado, não é? No caso do Genésio [adolescente que atuou como testemunha de acusação de Darly e Darci], ele não sabe nada da minha vida. O Genésio foi um perverso que inventou mentiras, não sei se combinado com a própria imprensa. Ele mentiu pra danar. Falou de pessoas que teriam sido mortas aqui e jogadas no açude. Tudo mentira dele.
O sr. enxerga alguma melhora no Acre decorrente da morte de Chico Mendes?
A melhora do Acre, no meu entender, foi essa Estrada do Pacífico, não é? A felicidade do Chico Mendes é que fez o Acre crescer e a infelicidade do Darly. Ele sofreu e morreu. Não sei como ele está. Não sei se está no céu, aonde está. Eu continuo sofrendo até hoje, quer dizer, para ajudar os políticos, ajudar o Lula, o Jorge Viana. Ajudar a todos aí. O canal de dinheiro foi eu e o Chico Mendes. Chico Mendes foi um mártir e eu também. Até que minha família tá sofrendo mais do que a do Chico Mendes. Eu quero que eles tenha mais dinheiro. Só que se tivesse justiça na ocasião não teria acontecido isso. Procurei recurso, chamei ele para nós ser amigos. Procurei autoridades para conversar com ele e ninguém me ajudou. Fizeram o mal para ele e me colocaram como instrumento.
O sr. não é o instrumento?
O instrumento que fiz esse mal, não. Não, não mandei matar Chico Mendes.
O sr. não mandou?
Confirmo que não mandei. Eu já disse muitas vezes que eu tinha muita razão de não querer que ele morresse, pois eu estava negociando minhas terras em Brasília e meu advogado me recomendou que não deixasse ninguém matar ele.
O sr. também diz que não mandou seu filho matar a sua mulher.
Deus me livre. Eu quero justiça.
O sr. não perdoa seu filho?
Isso o tempo fala mais alto. Mas quem vai poder perdoar ele é Deus. Eu mesmo, não.
O sr. gostava muito dela.
É. Ela não merecia. Ele está rindo. Acho que ele fez aquilo calculado, por inveja.
Inveja por quê?
Porque os outros filhos meus têm as coisas e ele não tinha nada. Estava reclamando que Oloci [filho de Dalry] tinha cordão de ouro, camioneta. Eu falei: não meu filho, vou te ajudar. Eles tem porque tem 40 anos, você tem 18. Quando estiver com 30, você vai ter camioneta, vi ter tudo, vou ajudar você a plantar cacau, vou lhe dar gado. Prometi tudo de bom pra ele. Eu ia ajudar ele mesmo.
Além disso, o sr. consegue entender por que ele deu um tiro na nuca dela, por trás, enquanto ela repousava numa rede?
Não tem explicação e por isso eu fico impressionado. Não tem explicação de nenhum motivo. Ele não conversou com ela, ela não agravou ele em nada. Naquele hora não sei como ele não me matou também.
O sr. chamou a polícia e acusou seu filho de ser o assassino de sua mulher?
É, isso está nos autos. Não quero mexer muito nesse assunto porque isso já está encerrado. Já dei meu depoimento e o meu sentimento não vai acabar tão cedo.
Passados 20 anos, o sr. teve algum momento de alegria?
Eu não quero recordar dessas coisas. Não quero falar em alegria. Eu só sei que estou na última instância de sofrimento.
Agradeço pela entrevista.
Obrigado
Saúda os presentes com um boa tarde e sobe firme a escada de três degraus. Na varanda, mais protegido da chuva, retira de dentro da camisa um saco plástico com a Bíblia Sagrada dentro.
Seus passos são cadenciados e firmes sobre o trecho úmido da verdejante pastagem de uma de suas três fazendas. Elas totalizam pouco mais de três mil hectares. Usando seu indefectível boné, camisa azul rasgada nas costas e uma calça com o zíper danificado, Darly Alves da Silva abre o portão da cerca que impede o acesso dos bois ao quintal da casa.
Saúda os presentes com um boa tarde e sobe firme a escada de três degraus. Na varanda, mais protegido da chuva, retira de dentro da camisa um saco plástico com a Bíblia Sagrada dentro.
- Essa é a minha arma - avisa.
Mas o velho fazendeiro ainda parece acuado, como se não estivesse dentro de sua própria casa. Senta-se no banco de madeira e logo avisa que não dará entrevista.
Retira do bolso da camisa a carteira de presidiário, onde consta uma anotação logo nas primeiras páginas: Término provável da pena: 22 de julho de 2015″.
Responde de modo gentil perguntas banais durante mais de três horas de conversa sobre o Acre, Chico Mendes, família, religião e até a respeito de outros implicados no complô que resultou no assassinato do homem mais famoso do Acre.
Quando a fera aparenta estar mais relaxada e falante, enfio a mão no bolso direito da capa de chuva. Tateio o mini-gravador, mas a operação se torna um desastre: aperto a tecla play em vez de rec. E o áudio de uma gravação me denuncia.
- Você está gravando. Avisei que não quero entrevista - fala com firmeza, enquanto tento me desculpar dizendo que apenas procurava um isqueiro.
Mais adiante, quando Darly Alves da Silva parece ainda mais relaxado, peço-lhe permissão para fazer uma pergunta incômoda. Ele autoriza.
- O que o sr. faria se pudesse voltar 20 anos no tempo?
- Águas passadas não movem moinho - responde secamente.
Sentado ao lado dele, curvo-me para abrir a mochila. Puxo o caderno de anotação e escrevo a resposta. Os olhos dele mudam de cor, encara-me sisudo, e vira-se para o outro lado do banco, onde está o radialista Raimari Cardoso, do blog Xapuri Agora, que ajudou-me a ter acesso ao recanto da família mais temida da região.
- Eu vim aqui atender a você, Raimari. Não sabia que você estava com um comparsa. Eu disse que não quero entrevista - afirma Darli, enquanto ameaça levantar-se para ir embora. Tive que me desculpar mais uma vez, repouso a mão sobre a coxa direita dele, fecho o caderno e o devolvo à mochila.
E haja mais tempo para a esgrima de mudar o rumo da prosa e outra vez deixar o dono da casa à vontade. Pergunto pelo livro que Darly tem intenção de publicar caso encontre alguém disposto a escrever sua biografia. Darly volta a se empolgar.
- Tenho esse sonho, sim. Preciso ganhar um dinheiro a mais. Eu acho que minha história vai interessar muito ao estrangeiro.
Darly também se entusiasma quando fala de sua nova arma, a Bíblia Sagrada. Ele ainda não foi batizado pelo fogo, mas está disposto a tratar disso logo. Quer cumprir a prisão domiciliar, obter a liberdade condicional e mudar de vez para Brasília. Ganhou gosto pelo lugar após o tempo que passou no presídio da Papuda.
- Eu quero minha salvação. Em Brasília, posso freqüentar todo dia a igreja Deus é mistério. É pentecostal. O pastor de lá era da Deus é Amor - explica.
Outro momento de empolgação e relaxamento é quando menciono o nome do ex-governador Jorge Viana, defensor de que a área da fazenda Paraná seja desapropriada e transformada em pólo-agroflorestal para assentamento de colonos.
- O Jorge Viana devia ser meu amigo, não é? Ele é bom. Mas eu acho melhor, gosto mais mesmo, é do irmão dele, o Tião Viana. Ele tem boas idéias - revela.
Em novembro, um filho de Darly, de 18 anos, matou a mulher mais jovem do pai dele dentro da fazenda Paraná. Enquanto repousava numa rede na varanda da casa, o jovem se aproximou e disparou um tiro de espingarda na nuca dela.
- Não perdôo ele de jeito nenhum. Se eu não estivesse com a mão sobre a Bíblia Sagrada, eu mesmo iria matar aquele covarde. O que ele fez foi uma covardia muito grande. Por causa desse crime, tem dias que eu me ajoelho e grito, implorando justiça a Deus - relata o fazendeiro com a voz embargada.
O celular toca. Do outro lado da linha, Elenira Mendes reclama que passei em Xapuri e não a procurei. Prometo voltar mais tarde. Ela quer saber aonde estou. Ao responder que estou entrevistando Darly, a filha de Chico Mendes, que tinha quatro anos quando viu o pai morrer tentando lhe dizer alguma coisa, sugere:
- O Darci [filho de Darly condenado a 19 anos de prisão com autor do tiro que matou Chico Mendes] prometeu que iria revelar os nomes dos demais mandantes quando o crime completasse 20 anos. Pergunta pro seu Darly quais eram os outros mandantes.
Peço mais uma vez permissão para fazer uma pergunta incômoda. Darly aceita e responde:
- Não lembro se o Darci prometeu isso. Eu perguntei muitas vezes a mesma coisa, mas ele sempre ficou calado. Eu dizia que poderia ser beneficiado se ele revelasse quem mandou matar o Chico Mendes, mas nada. O que posso dizer é que nunca paguei advogado pro Darci. Alguém pagou. Não sei se foi o falecido Gastão Mota, o falecido ex-prefeito Adalberto Aragão, coronel Chicão ou outro qualquer - afirma.
Quando estava perto de três horas de conversa, voltei a insistir com Darly em defesa da entrevista:
- Respeito que o senhor não queira ser entrevistado, mas quero ao menos provar que estive aqui tentando a entrevista. Aceita que eu grave o sr. justificando a sua recusa?
- Tudo bem, isso eu posso fazer. Sei que você está trabalhando. Com a gravação você pode mostrar pro chefe da sua revista que esteve comigo na fazenda Paraná e foi bem recebido.
Após 20 anos do assassinato de Chico Mendes, leia a entrevista a seguir, gravada em vídeo e áudio:
O senhor não está disposto a gravar entrevista porque aconteceram coisas ruins, como a morte de sua mulher, assassinada na fazenda Paraná por um de seus filhos?
É, rapaz. Estou muito traumatizado porque o que aconteceu na minha vida foi uma tragédia muito triste. Aí eu estou despreparado para conversar qualquer tipo de assunto. Esse problema que aconteceu aqui, recente, deixou eu muito triste. Além de sentir a falta da pessoa que foi morta injustamente pelo meu filho, um covarde que matou ela, sem ter nenhuma razão, aí eu sinto muito pelos dois filhos dela, que ela ama demais, o Júnior e a Ana. (choro). Então eu não tenho como falar. Agora
O senhor está com quantos anos?
Estou dentro de 73. Vou fazer ano em maio.
Essa é uma região próspera?
Quando o senhor chegou aqui era jovem e tinha muitos sonhos, não é?
Eu cheguei no Acre em 74. Meu sonho é que Tinha uma revista do Dantinha [ ex-governador Wanderley Dantas, cuja propaganda dizia que "o Acre é um sertão sem seca e um sul sem geada"] que estava chamando os sulistas para cá. Eu vim com 12 famílias do Paraná com a intenção de plantar café. Cheguei a plantar 12 mil covas, mas aí saiu um sapezal. E aqui chovia muito naquela época e a gente não dava conta, o fogo queimou. Aí virei para a pecuária. Também fui testa-de-ferro e tomei muito prejuízo. Plantei colonhão, não deu; plantei jaraguá, não deu; plantei a braquiarinha, também não deu. Veio o braquiarão, aí foi que melhorou. Mas sempre trabalhando 20, 10 homens diretamente. Vendi muito arroz. Comprava castanha, comprava borracha, negociava com seringueiro. Então eu levava uma vida estável. Não sei se é por um destino ou se é por uma missão, foi dada essa reviravolta na minha vida. Para mim é um sonho que nem acredito - o que falam de mim, que nunca fiz essas coisas de covardia. Sempre tive o temor de Deus, sempre vivo do meu suor. Essa propriedade, quando cheguei aqui, não tinha nada, nada feito. Isso aqui foi feito com o meu suor, não tem nada do sangue de ninguém, nem de roubo. Eu acredito que eu sou muito injustiçado. A minha resposta que tenho para falar com você é esta.
O senhor foi entrevistado recentemente pela Rede Globo. Quando aconteceu aquela entrevista?
Aquela entrevista foi quando peguei prisão domiciliar, não tenho bem certeza, no mês de janeiro, pois depois, parece que no dia 2 de março, foi que voltei para lá [prisão]. Em janeiro, eu ia atravessando a porteira, quando parou um táxi. Como tenho um sobrinho que é taxista, cheguei nele. E eles me filmando, me filmando. Eu não queria dar entrevista, mas acabei dando, falando aquela conversa que falei [ninguém matou ele, Chico Mendes foi quem se matou]. Se agravou alguém...
O senhor se arrepende daquilo que o senhor disse?
Eu falei assim, sem pensar. Eu não quero defamar o Chico Mendes porque não quero ofender a família dele. O modo que falei foi encarando as Escrituras Sagradas: aquele que ira a ira do seu irmão comete homicídio. O Chico Mendes irava a ira de todos os fazendeiros, de todos os trabalhadores, porque o Chico Mendes não era o Sindicato dos Trabalhadores. Ele era do sindicato de não trabalhar. Ele protegia a floresta, como eu também protejo e quero dar todo apoio. Se for possível reflorestar qualquer árvore, estou disposto. Estou disposto a trabalhar, a respeitar a lei. Falei aquilo encarado na justiça. Quem quiser ler, a Bíblia está dizendo: Não matarás; não irar a ira do seu irmão; aquele que ira a ira do seu irmão, comete homicídio. Não que eu disse que ele se matou, ele mesmo, com as próprias mão. Ele não era homem para isso.
Então teve gente que interpretou mal.
Que interpretou mal e eu peço desculpas para a família. Eu falei encarado nas Escrituras Sagradas: a mulher é subordinada ao marido e o marido tem que respeitar a mulher, o filho também tem que respeitar o pai. E todo homicida não herdará o reino dos céus. Aquele que mexe na ira do próximo, comete homicídio. Não é só quem mata, não. Eu falei essa causa assim, no meu entender. Sobre a família Chico Mendes, peço que Deus ajude a eles, que eles possam estudar. Não tenho inveja deles. Já fiquei sabendo o irmão dele acredita que não devo nada nessa morte. Confio muito que eles não têm nada contra mim. Acho que eles devem saber mais ou menos que eu estava negociando a terra do Cachoeira lá em Brasília. Eu sabia que se matasse uma pessoa não ia negociar vendendo bem vendido. Aí mataram ele e tomei muito prejuízo. Não recebi nada.
Perguntei antes o que o senhor faria se pudesse voltar no tempo. O senhor pareceu não gostar da pergunta e havia respondido que águas passadas não movem moinhos.
No meu entender, tudo que a faz Vamos supor que eu sei que fosse acontecer isso, que eu fosse cair nisso, que eu penso que é até uma missão Quer dizer, se há 20 anos para trás, se eu tivesse me mudado, ido embora, sendo que eu trouxe muito dinheiro pro Acre naquela época e não daria para mim tirar nem 20% do meu dinheiro, pois as terras aqui não valiam nada. A terra não tinha valor. Aí se eu tivesse, naquele ano, há 20 anos para trás, não tinha botado a minha família para sofrer. Eu fiquei servindo de estopim dos outros. Eu quero encerrar essas perguntas tuas porque não estou preparado para responder suas perguntas.
O sr. tem planos de manter aqui, de trabalhar, de tocar essa fazenda? O sr. ainda tem sonhos, esperanças?
Sonho de trabalhar toda a vida eu tive e trabalho. A gente quando está vivo tem esperança de trabalhar e fazer alguma coisa, né? Mas eu tenho vontade de ir embora. Estou me preparando para ir embora. Eu não quero que o pessoal fique usando o meu nome toda hora com defamação. Vou embora só por isso. Estou procurando a igreja. Quero um lugar onde eu possa ir pra igreja todo dia. Quero esquecer do passado.
O sr. continua lendo o Evangelho?
Sempre. Todo dia eu leio os Sarmos. Leio toda parte.
Toda a sua família sempre foi muito evangélica.
O meu pai era evangélico.
O que acha da idéia de transformarem a Fazenda Paraná num pólo-agroflorestal?
Acho que se o governo entrar em acordo com nós e pagar para nós um valor que a gente não tenha prejuízo A gente está de acordo a negociar porque terra a gente compra em todo canto. Trabalhar a gente trabalha em todo canto.
E Darci? O sr. disse que não tem tido contato com ele.
Está com quase três anos que estou aqui, nesta justiça, né? Não tenho falado com ele, não.
O que o sr. sente quando vê os filhos do Chico Mendes? Elenira já disse que não sente rancor. O que acha disso?
Acredito que nenhum deles tem. Quero que nenhum deles tenha, conforme eu não tenho. Eu peço a Deus que guarde a todos eles do mal. Que eles sigam a carreira deles, que se formem. É isso o que espero para a família dele, para todos eles. De mim não esperem mal, nem de minha família. Nenhum deles.
Esses anos de prisão lhe trouxeram muito sofrimento?
Um homem acostumado a trabalhar das 7 da manhã às 7 da noite, a progredir, se ver defamadocomo bandido é muito triste. Eu nunca fui bandido, graças a Deus. Toda a vida fui um homem honesto, trabalhador, cumpridor de meus deveres.
E o que o sr. pensa de nós que somos a imprensa?
A imprensa pronuncia o que os outros fala. Só que não é investigado, não é? No caso do Genésio [adolescente que atuou como testemunha de acusação de Darly e Darci], ele não sabe nada da minha vida. O Genésio foi um perverso que inventou mentiras, não sei se combinado com a própria imprensa. Ele mentiu pra danar. Falou de pessoas que teriam sido mortas aqui e jogadas no açude. Tudo mentira dele.
O sr. enxerga alguma melhora no Acre decorrente da morte de Chico Mendes?
A melhora do Acre, no meu entender, foi essa Estrada do Pacífico, não é? A felicidade do Chico Mendes é que fez o Acre crescer e a infelicidade do Darly. Ele sofreu e morreu. Não sei como ele está. Não sei se está no céu, aonde está. Eu continuo sofrendo até hoje, quer dizer, para ajudar os políticos, ajudar o Lula, o Jorge Viana. Ajudar a todos aí. O canal de dinheiro foi eu e o Chico Mendes. Chico Mendes foi um mártir e eu também. Até que minha família tá sofrendo mais do que a do Chico Mendes. Eu quero que eles tenha mais dinheiro. Só que se tivesse justiça na ocasião não teria acontecido isso. Procurei recurso, chamei ele para nós ser amigos. Procurei autoridades para conversar com ele e ninguém me ajudou. Fizeram o mal para ele e me colocaram como instrumento.
O sr. não é o instrumento?
O instrumento que fiz esse mal, não. Não, não mandei matar Chico Mendes.
O sr. não mandou?
Confirmo que não mandei. Eu já disse muitas vezes que eu tinha muita razão de não querer que ele morresse, pois eu estava negociando minhas terras em Brasília e meu advogado me recomendou que não deixasse ninguém matar ele.
O sr. também diz que não mandou seu filho matar a sua mulher.
Deus me livre. Eu quero justiça.
O sr. não perdoa seu filho?
Isso o tempo fala mais alto. Mas quem vai poder perdoar ele é Deus. Eu mesmo, não.
O sr. gostava muito dela.
É. Ela não merecia. Ele está rindo. Acho que ele fez aquilo calculado, por inveja.
Inveja por quê?
Porque os outros filhos meus têm as coisas e ele não tinha nada. Estava reclamando que Oloci [filho de Dalry] tinha cordão de ouro, camioneta. Eu falei: não meu filho, vou te ajudar. Eles tem porque tem 40 anos, você tem 18. Quando estiver com 30, você vai ter camioneta, vi ter tudo, vou ajudar você a plantar cacau, vou lhe dar gado. Prometi tudo de bom pra ele. Eu ia ajudar ele mesmo.
Além disso, o sr. consegue entender por que ele deu um tiro na nuca dela, por trás, enquanto ela repousava numa rede?
Não tem explicação e por isso eu fico impressionado. Não tem explicação de nenhum motivo. Ele não conversou com ela, ela não agravou ele em nada. Naquele hora não sei como ele não me matou também.
O sr. chamou a polícia e acusou seu filho de ser o assassino de sua mulher?
É, isso está nos autos. Não quero mexer muito nesse assunto porque isso já está encerrado. Já dei meu depoimento e o meu sentimento não vai acabar tão cedo.
Passados 20 anos, o sr. teve algum momento de alegria?
Eu não quero recordar dessas coisas. Não quero falar em alegria. Eu só sei que estou na última instância de sofrimento.
Agradeço pela entrevista.
Obrigado