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Principiologia (II)
Sábado, 14 Novembro de 2009 - 10:05 | Cândido Ocampo
Uma inovação principiológica trazida pelo novo Código de Ética Médica, que entrará em vigor em março do ano que vem, é a negação expressa da natureza consumerista da relação médico-paciente, contrariando o entendimento quase unânime de todo Judiciário brasileiro, que baseado no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor considera o médico um prestador de serviço e o paciente, por sua vez, consumidor. Logo, não há como negar que se trata de relação de consumo. Apenas para ilustrar, vejamos o que diz o mencionado artigo 3º do CDC: “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”
Inobstante tal entendimento, o Código de Deontologia Médica dispõem no seu item XX, do capítulo I, que “A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo.” Por dever de esclarecimento é pertinente afirmar que um mero regulamento administrativo, como o Código de Ética Médica, não pode revogar uma Lei Ordinária, como o CDC, e ao Judiciário é atribuída a última interpretação do nosso Ordenamento Jurídico. No entanto, cabe destacar a motivação de extremada negação. Na última década presenciamos uma agudização da aplicação do CDC na relação médico-paciente. Decisões judiciais são hodiernamente prolatadas impondo aos médicos um fardo demasiado pesado em processos indenizatórios, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova, onde quem acusa nada tem que provar. Concessões de justiça gratuita são rotineiramente decretadas nesses mesmos processos sem um mínimo de critério, dando aos que utilizam o meio processual como tentativa de enriquecimento ilícito o prêmio da aventura gratuita. É a regra que deveria ser a exceção.
Se é verdade afirmar que o Código Consumerista é instrumento legal prestado a equilibrar relações economicamente desiguais, também não é menos verdade consignar que a sua utilização desenfreada não pode inviabilizar o desenvolvimento econômico e tecnológico, sendo certo que sua missão precípua (mens legis) é harmonizar as relações ditas de consumo (art. 4º, III). Há aqueles que entendem que a relação médico-paciente não está abarcada pelo CDC porque não se pode considerar a vida e a saúde como bens de consumo, não podendo ser comparadas a um eletrodoméstico. Nessa lógica, o mister médico não pode ser considerado serviço, pois não há na sua atividade oferta ao mercado de bens de consumo. Discussão à parte, a inegável verdade é que o CDC não excluiu a atividade médica de sua abrangência. Tanto que no § 4º do seu artigo 14 prescreve com todas as letras, e sem excluir qualquer categoria, que “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”
Considerando que os facultativos são historicamente tidos como profissionais liberais, impróprio se apresenta qualquer entendimento diverso. Em que pese ser perfeitamente justificável e compreensível a rebeldia do Código de Ética Médica em tentar negar a natureza consumerista da relação médico-paciente, tendo em vista os abusos acima mencionados, não é “murrando facas” que as instituições médicas vão mudar a tendência mundial de socialização da legislação civil. Na simplória opinião deste escriba, à classe cabe descer do panteão em que foi erigida pela visão mitológica e sacerdotal de sua origem, e promover uma integração esclarecedora com todas as instituições organizadas da sociedade, inclusive o Judiciário, que não raro é integrado por juízes formalistas que desconhecem a realidade do ambiente hospitalar em que a prestação de serviço é realizada e, principalmente, ignoram a natureza conjectural e imperfeita da ciência médica.
Cândido Ocampo, advogado atuante no ramo do Direito Médico.
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